terça-feira, 28 de setembro de 2010

"Ocasal Macbeth"
VOCÊ JÁ leu ou viu a peça "Macbeth", de Shakespeare? Você lê clássicos assim não apenas pelo deleite estético (gosto de ler), mas pra saber quem você é.
Em épocas de conversa fiada sobre "nativos digitais", onde muita gente fica "fazendo vento" falando de como os jovens "evoluíram" porque olham pra telas de computador e falam amenidades no celular o tempo todo, eu, como cético que sou, prefiro fazer os jovens lerem Shakespeare.
Eu sei que tem uma turminha por ai que diz que não se pode comparar Shakespeare com, digamos, "poemas neandertais". Mas, eu, que não respeito a "nova censura", comparo e digo: Shakespeare é melhor.
Outra coisa: se você é um frequentador de jantares inteligentes, dou uma dica. Nunca fale mal de Shakespeare, ou qualquer outro clássico, porque se tiver alguém ali que não seja "fake" vai saber que você é um bobo. Você passa, Shakespeare fica. Mas, vamos ao que interessa.
Na peça, Macbeth, um cavaleiro medieval, decide matar seu rei porque quer tomar seu lugar e acaba desgraçado e morto. Há aí, entre tantas outras coisas, três questões que valem a pena se você quiser saber o que é um ser humano.
Para dizer isso, eu pedirei ajuda a outro gigante, G. K. Chesterton (século 20). Aliás, recomendo fortemente a leitura da recém-publicada coletânea de seus ensaios, "O Tempero da Vida e Outros Ensaios", da editora Graphia. Nessa coletânea, Chesterton comenta no ensaio "Macbeths" o casal Macbeth da peça homônima de Shakespeare.
Uma primeira questão são as qualidades (ou "competências" -detesto essa palavra!) de Macbeth: como homem corajoso e inteligente que é se destaca dos outros em batalha. E por isso ganha títulos de nobreza. Mas Macbeth se perguntará: sou melhor do que os outros, por que não posso ser eu o rei?
Quem nunca se sentiu "injustiçado" pelo destino? Entra em cena sua ambição. Hoje em dia, nessa época brega em que vivemos, talvez Macbeth pudesse ser modelo de "liderança" em workshops de recursos humanos. Mas, Shakespeare não era brega.
Outra questão é sua relação com o sobrenatural: as feiticeiras o alertam para o destino de "sucesso" que o espera. As crenças religiosas sempre serviram para nos fazer crer que somos "acompanhados" por alguém. De novo, na época brega em que vivemos, talvez se diria que Macbeth acreditou que o universo conspiraria a seu favor.
Pobre idiota é aquele que não vê que o destino é sempre contra nós porque somos mortais.
Mas fica uma questão: qual a medida certa da ambição? Quantos de nós já moveram mundos para ao final se verem na condição de Macbeth no quinto ato: "A vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e de fúria, significando nada".
O que adianta ganhar o mundo se você perdeu sua alma? Alguns, cínicos, diriam: quem precisa de alma quando temos grana? Essa resposta merece um texto à parte...
Outra questão é o famoso poder da Lady Macbeth sobre o marido. Para muitos especialistas, ela teria sido a causa definitiva para seu marido decidir assassinar o rei Duncan da Escócia. A análise de Chesterton é interessante porque aponta um traço da relação mulher-homem típica da vida real.
Qual relação? Sabe-se que num dado momento Macbeth entra em crise e recua na certeza de cometer o assassinato. Sua esposa, então, o convence a continuar no projeto, "motivando-o" da forma correta. E qual é essa forma? Desafiando sua virilidade e coragem.
Aqui Shakespeare põe o dedo na ferida: o homem morre de medo de ser fraco diante da mulher. Chesterton defende Lady Macbeth da acusação comum de ser "pouco feminina" dizendo, com razão, que ela é sim muito feminina no modo de conduzir seu marido para o que ela quer: que ele tome o trono da Escócia como prova de sua coragem e virilidade. Mentiras bonitinhas à parte, nada mudou: ou o homem é "forte" ou não vale nada.
Quando você não souber mais onde parar em sua ambição, lembre de Macbeth. Quando você se sentir um miserável porque um simples olhar feminino lhe destrói, lembre de Macbeth. Quando você sentir que a vida é um "conto idiota", lembre de Macbeth.
(Luiz Felipe Pondé, na FOLHA).

domingo, 12 de setembro de 2010



"CELULARES, PRIVADAS E 'UNIVERSOS PARALELOS'"


Em abril passado os mastigadores de números da ONU surpreenderam o mundo ao mostrar que na Índia (1,1 bilhão de habitantes) só 31% da população tinha acesso ao saneamento básico, enquanto 45% dos indianos tinham celulares. Privada x celular seria um indicador daquilo que o colunista americano Roger Cohen chamou de "universos paralelos".
A Pnad de 2009 mostrou uma situação parecida em Pindorama. Dos 190 milhões de brasileiros, 78 milhões não têm acesso ao saneamento, enquanto há no país 162 milhões de celulares. (Como há pessoas que têm mais de um aparelho, esse número não pode ser diretamente associado à população.)
É possível que essa comparação seja um fútil exercício estatístico, mas a ideia dos "universos paralelos" é estimulante. O cidadão mora em Itaboraí (RJ), não tem latrina, mas fala com a avó em Tauá, no interior cearense. Os serviços de comunicações, privatizados, expandem-se com mais vigor, e muito maior rentabilidade, que o saneamento estatal. Ademais, não se conhece caso de pessoa que tenha trocado saneamento por celular.
O cidadão com celular entra num universo onde pode se informar e reivindicar melhores serviços públicos. (Mesmo sabendo-se que 82% dos celulares brasileiros são pré-pagos.)
O mundo de "universos paralelos", com mais celulares do que privadas, torna-se chocante quando se vê a expansão mundial do mercado de água engarrafada. No próximo ano ele valerá US$ 86 bilhões, 51% acima da cifra de 2006.
A degradação (ou o medo) da qualidade da água da torneira criou um hábito regressivo. No século 19 o andar de cima de Londres consumia água encanada. Quem a comprava a granel era a patuleia, pois as fontes públicas espalhavam cólera.
O Brasil é o quarto mercado consumidor de água engarrafada, depois dos EUA, México e China. Como a própria associação das empresas do setor reconhece, há marcas de "mineralizadas" que são apenas água da torneira (tratada com dinheiro da Viúva) enfeitada com alguns sais.

Elio Gaspari, na FOLHASP, 12.9.2010







Retrato da potência banguela

A PARCELA dos brasileiros com pelo menos 11 anos de estudo mais que dobrou de 1995 para 2009. Isto é, trata-se da proporção dos brasileiros que completaram pelo menos o ensino médio. "Mais que dobrar" parece um grande progresso. É?
Bem, em 1995, 15,5% da população havia estudado mais de 11 anos. No ano passado, essa proporção subira para 33,3%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad de 2009, cujos primeiros resultados foram divulgados ontem pelo IBGE.
O ritmo de aumento da parcela da população que ao menos se graduou no colegial flutua em torno de 1,5 ponto percentual desde 2002.
Nessa toada, metade da população terá completado pelo menos o segundo grau em 2022, oito anos depois da Copa, seis anos depois da Olimpíada do Rio, mais de uma década depois do início da construção do trem-bala, caso esse disparate se torne realidade. Note-se que 67% dos brasileiros têm mais de 20 anos ou mais -20 anos parece idade suficiente para ter terminado o ensino médio (o que deveria ocorrer aos 17 ou aos 18 anos de idade).
Nossos devaneios de potência juvenil ou média, para nem falar de sonhos de suprema elegância, poder e cultura, ficam desmoralizados diante da estatística. O quadro fica ainda pior quando se lembra que a qualidade da escola, fundamental ou média, costuma nos colocar nos três últimos lugares dos rankings de desempenho estudantil (que em geral dizem respeito a 40 a 50 países).
O país se recupera ainda da década e meia de estagnação e tumulto econômicos, o que ajudaria a explicar o mau resultado? Com um pouco mais de progresso da renda e ordem fiscal seria possível melhorar a educação? Talvez. Mas foram assim tão excepcionais as melhorias de renda e do mercado de trabalho?
Não, não se trata aqui mais uma vez da disputa fanática entre fernandinos tucanos e petistas lulistas. Políticas de governos têm, sim, alguma influência no desenvolvimento do mercado de trabalho, mas muita vez os efeitos de tais políticas são notáveis apenas anos após encerrado um governo. O que interessa aqui é só a radiografia de um país que se imagina "potência emergente".
A renda média dos domicílios cresceu, em média, 3,6% de 2004 para cá, em termos reais. O número de pessoas por domicílio caiu -a renda per capita domiciliar cresceu, pois, um pouco mais que 3,7% ao ano. Mas de 1998 a 2003 a renda média domiciliar caíra 4% ao ano. Parte importante da sensação de bem-estar dos últimos anos é mais um alívio do que grande progresso.
O índice de distribuição de renda melhorou também, como se sabe. Logo, a renda dos mais pobres cresceu mais. Porém, as séries históricas de dados divulgadas ontem pelo IBGE mostram que a distribuição de renda de 2002 era tão ruim (ou boa) como a de 1981. Durante duas décadas, o país se tornou ainda mais injusto do que sempre o foi.
Apenas 54,1% dos trabalhadores ocupados contribuíam para algum instituto de previdência no ano passado. Melhorou -eram 43,6% em 1992. Mas a estatística incrementada de 2009 quer dizer apenas que quase metade dos trabalhadores não terá cobertura previdenciária na velhice ou doença, ou precisará de uma aposentadoria ou Bolsa inteiramente bancada pelo Estado, tanto problema social como fiscal.
Vinicius Torre Freire, na FOLHASP, 9.9.2010