quarta-feira, 3 de março de 2021

Sobre o tempo

 Fim e começo


Depois de cada guerra

alguém tem que fazer a faxina.

Colocar uma certa ordem

que afinal não se faz sozinha.


Alguém tem que jogar o entulho

para o lado da estrada

para que possam passar

os carros carregando os corpos.


Alguém tem que se atolar

no lodo e nas cinzas

em molas de sofás

em cacos de vidro

e em trapos ensanguentados.


Alguém tem que arrastar a viga

para apoiar a parede,

pôr a porta nos caixilhos,

envidraçar a janela.


A cena não rende foto

e leva anos.

E todas as câmeras já debandaram

para outra guerra.


As pontes têm que ser refeitas,

e também as estações.

De tanto arregaçá-las,

as mangas ficarão em farrapos.


Alguém de vassoura na mão

ainda recorda como foi.

Alguém escuta

meneando a cabeça que se safou.

Mas ao seu redor

já começam a rondar

os que acham tudo muito chato.


Às vezes alguém desenterra

de sob um arbusto

velhos argumentos enferrujados

e os arrasta para o lixão.


Os que sabiam

o que aqui se passou

devem dar lugar àqueles

que pouco sabem.

Ou menos que pouco.

E por fim nada mais que nada.

 

Na relva que cobriu

as causas e os efeitos

alguém deve se deitar

com um capim entre os dentes

e namorar as nuvens.


Referência:

SZYMBORSKA, Wisława. Koniec i początek / Fim e começo. Tradução de Regina Przybycien. In: __________. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. Edição Bilíngue. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Em português: p. 92-93; em polonês: p. 154-156.


Nenhum comentário:

Postar um comentário