sexta-feira, 13 de outubro de 2023

À maneira de Pessoa

 



O que tenho é cansaço e o desassossego. Receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente inútil. O insuportável tédio de todas estas caras, inteligentes ou totalmente sem, grotescas até a náusea de tão felizes ou infelizes, uma maré separada de coisas vivas que me são alheias. Não há pior solidão do que a de não ter com quem dividir a vida.


domingo, 24 de setembro de 2023

Lendo antes que acabe...

Nestes dias estou lendo (ou tentando ler) mais de um livro ao mesmo tempo: "Encaixotando minha biblioteca",do Alberto Manguel, "Avenida Paulista", do João Pereira Coutinho, e "Os Anéis de Saturno" de W.G. Sebald.

O primeiro é uma declaração de amor às biblioteca públicas e ao livros, com frases lapidares como "Minha memória está menos interessada em mim do que nos meus livros: é mais fácil recordar-me de uma história lida uma só vez, há muito tempo, do que daquele jovem que a lia". Este livro merece 'in totum' a frase atribuída a Faulkner: "O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor".

O segundo traz crônicas deliciosas escritas em 2006/2007, que ainda soam atuais hoje, sobre Woody Allen, sobre o Onze de Setembro e sobre a fama 'automática' e vazia dos nossos tempos. Já escrevia ele, em 2006, que "a cultura do ruído surgiu e instalou-se, precisamente, para esconder a vacuidade das pessoas. Para esconder, no fundo, como os seres humanos se tornaram desinteressantes. Nada para dizer. Nada para escutar".

O terceiro traz reminiscências do autor.sobre a Inglaterra que já foi uma potência e sobre a passagem do tempo que destrói irremediavelmente o mundo como o conhecemos, e deixa um prêmio de consolação que é a memória, pra derrotar a realidade.

Coutinho é um observador feroz do nosso Brasil, e Manguel passa da raiva pela perda à aceitação, nos ensinando, como Chesterton, que se vale a pena fazer alguma coisa, então vale a pena fazê-la mal. Sebald ensina: a futilidade da existência é parcialmente apagada pela grandeza e pela a habilidade de nossa imaginação.

 

domingo, 17 de setembro de 2023


Trabalho e Cansaço


Acordo no meio da madrugada e quase que automaticamente penso nos prazos estourando e na (im)possibilidade de cumprir as metas, seja por cansaço ou falta de método.

No jornal uma reportagem sobre a (utópica.?) separação entre vida pessoal e trabalho parece um conto de ficção. Ultimamente não consigo 'desligar', e as lições todas de Domenico De Masi - aliás falecido nesta semana, me parecem impraticáveis.

Sim, bem sei que o problema não é o trabalho. Enquanto não resolver certas 'questões' o corpo vai reclamar. Enquanto não decidir como e com o que viver, o que e com quem repartir, não estarei vivo. O que fazer.?

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 Um poema e tanto.


Next, please

 

Always too eager for the future, we

Pick up bad habits of expectancy.

Something is always approaching; every day

Till then we say,

 

Watching from a bluff the tiny, clear,

Sparkling armada of promises draw near.

How slow they are! And how much time they waste,

Refusing to make haste!

 

Yet still they leave us holding wretched stalks

Of disappointment, for, though nothing balks

Each big approach, leaning with brasswork prinked,

Each rope distinct,

 

Flagged, and the figurehead with golden tits

Arching out way, it never anchors; it’s

No sooner present than it turns to past.

Right to the last

 

We think each one will heave to and unload

All good into our lives, all we are owed

For waiting so devoutly and so long.

But we are wrong:

 

Only one ship is seeking us, a black –

Sailed unfamiliar, towing at her back

A huge and birdless silence. In her wake

No waters breed or break.

 

16 January 1951

 

In: “The Less Deceived” (1955)

 

Barco verde e pássaro

(Helga Balaban: artista búlgara)

 

O próximo, por favor

 

Sempre ansiosos demais quanto ao futuro,

Adquirimos maus hábitos acerca das expectativas.

Algo sempre está a se aproximar; a cada dia

Dizemos até então,

 

Observando de um rochedo a diminuta, nítida

E cintilante armada de promessas que se aproxima.

Quão lentas são elas! E quanto tempo perdem,

Recusando-se a se apressar!

 

No entanto, ainda nos deixam a segurar amargas hastes

De decepção, pois, embora nada se oponha a cada

Grande aproximação, adernado com brônzeos arreios,

Cada amarrilho em particular,

 

Com seu pendão, e a carranca com tetas douradas,

Arqueando-se para fora, jamais ancoram;

Tão logo presentes, já se tornaram passado.

Até o último momento,

 

Cremos que vão aportar e descarregar tudo de bom

Em nossas vidas, tudo aquilo que se nos deve

Por esperarmos com tanta devoção e por tanto tempo.

Mas estamos equivocados:

 

Apenas um navio está a nossa procura, um negro –

Pouco versado em navegar, trazendo a reboque

Um silêncio imenso e sem pássaros. Em seu curso,

Não se produzem nem se rompem vagas.

 

Referência:

 

LARKIN, Philip. Next, please. In: __________. Collected poems. Edited with na introduction by Anthony Thwaite. First American printing. New York, NY: Farrar, Straus and Giroux; The Marvell Press, 1989. p. 52.





domingo, 3 de setembro de 2023

Lendo, de novo, os poemas de Wislawa Szymborska, peta polonesa ganhadora do Nobel de 1996, que faleceu em 2012, aos 88 anos.

Foi funcionária pública e também trabalhou como secretária e editora de uma revista educativa, atuando como ilustradora. Num primeiro momento, aproximou-se da filosofia socialista e tornou-se membro do Partido dos Trabalhadores Poloneses, como a maioria dos intelectuais da época. Em 1954, sua segunda coletânea de poemas exaltou esse pensamento. Mas, na terceira coleção de poemas, publicada em 1957, revelou a desilusão e a insatisfação pela ideologia, transparecendo o desencantamento nos seus poemas.

De tudo um pouco, da filosofia à vida cotidiana, um olhar diferenciado, distinto... De um quadro no museu a um gato abandonado, das tragédias do século à fragilidade da vida, da indiferença do universo com a espécie humana à receita de como escrever um currículo, todos os temas atravessados por um certa ironia.

Adorei ler "A mulher de Lot", sobre a destruição de Sodoma e Gomorra. Na Bíblia, essa personagem deve uma ou duas linhas, mas aqui ot" reto- ma a história bíblica da destruição de Sodoma. A mulher de Lot, a quem a Bíblia dedica apenas uma ou duas linhas, dizendo que ela se voltou para a cidade e foi transformada numa estátua de sal, como fosse símbolo da curiosidade feminina, aqui explica as suas razões, muitas e talvez banais, como são as ações humanas.




São Paulo, julho/agosto 2023.





sábado, 2 de setembro de 2023

 


Lendo Alberto Manguel ('Encaixotando minha biblioteca'), reflito... a boa escrita supõe dificuldades?

Ou: o sofrimento produz boa arte?

Diz ele que é somente um estereótipo: o escritor faminto à luz de velas não produz, só por esta circunstância, uma obra de qualidade. E que essa crença supõe, por exemplo, que a arte nos faz infelizes. Por exemplo, no livro 'Admirável Mundo Novo', de Aldous Huxley, o Administrador justifica sucintamente a decisão de eliminar a arte da sociedade humana, afirmando que "Este é o preço que devemos pagar pela estabilidade. Temos de escolher entre a felicidade e o que as pessoas costumavam chamar de arte superior. Sacrificamos a arte superior".

De seu lado, os gregos viam a arte e o comércio como incompatíveis: nenhuma das nove Musas se envolvia em transações comerciais, e os negócios no Olimpo eram deixados nas mãos de Hermes, o trapaceiro, deus dos mercados e ladrões, que era o mensageiro de outras divindades. Como os cavalheiros e as damas vitorianas, os deuses gregos não se rebaixavam para lidar diretamente com comerciantes.

Como muitas criações literárias que se iniciam como estalos de gênio e terminam como surrados clichês (por exemplo, Macbeth queixando-se do som e da fúria, Dom Quixote combatendo os moinhos de vento), a imagem do escritor confinado ao sótão foi apenas uma criação literária, nascida sem dúvida para descrever certo escritor em certo momento num poema ou romance há muito perdido.



Foi só isso.

São Paulo, 28 de agosto, 2023.



quarta-feira, 3 de março de 2021

Sobre o tempo

 Fim e começo


Depois de cada guerra

alguém tem que fazer a faxina.

Colocar uma certa ordem

que afinal não se faz sozinha.


Alguém tem que jogar o entulho

para o lado da estrada

para que possam passar

os carros carregando os corpos.


Alguém tem que se atolar

no lodo e nas cinzas

em molas de sofás

em cacos de vidro

e em trapos ensanguentados.


Alguém tem que arrastar a viga

para apoiar a parede,

pôr a porta nos caixilhos,

envidraçar a janela.


A cena não rende foto

e leva anos.

E todas as câmeras já debandaram

para outra guerra.


As pontes têm que ser refeitas,

e também as estações.

De tanto arregaçá-las,

as mangas ficarão em farrapos.


Alguém de vassoura na mão

ainda recorda como foi.

Alguém escuta

meneando a cabeça que se safou.

Mas ao seu redor

já começam a rondar

os que acham tudo muito chato.


Às vezes alguém desenterra

de sob um arbusto

velhos argumentos enferrujados

e os arrasta para o lixão.


Os que sabiam

o que aqui se passou

devem dar lugar àqueles

que pouco sabem.

Ou menos que pouco.

E por fim nada mais que nada.

 

Na relva que cobriu

as causas e os efeitos

alguém deve se deitar

com um capim entre os dentes

e namorar as nuvens.


Referência:

SZYMBORSKA, Wisława. Koniec i początek / Fim e começo. Tradução de Regina Przybycien. In: __________. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. Edição Bilíngue. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Em português: p. 92-93; em polonês: p. 154-156.